terça-feira, 27 de outubro de 2009

A propósito de... Este país não é para velhos


Foi o preconceito que me acompanhou na leitura desta obra. Foi ele o principal responsável pela resistência que fui oferecendo aos parágrafos, página após página.
Em momento algum, este seria um livro que coubesse nas minhas escolhas. O facto de dele ter sido feita uma adaptação cinematográfica, coroada de Óscares e um mega-sucesso de bilheteira, fez com que não conseguisse evitar um prévio julgamento pejorativo. Este país não é para velhos foi, em simultâneo, a negação e a confirmação dessa impressão primeira.
Relativamente ao filme, e estando muito longe de poder pronunciar-me com rigor, até porque nem me assiste conhecimento para tal, pareceu-me uma cópia do que no livro corresponde à acção principal (única, aliás), omitindo largamente aquilo que lhe confere o interesse de que efectivamente se reveste: as reflexões do Xerife Bell, já que são elas que dão sentido à obra, tornando-a quase relevante. À parte a interpretação magistral de Javier Bardem, sobra apenas uma banal história de tráfico e violência. Confirma-se, assim, o tal juízo negativo que se apoderou de mim. A sua negação acontece no livro e por culpa dos monólogos interiores de Bell, arauto daquilo que o tempo actual se encarregou de tornar utopia.
Há longos anos à frente dos destinos de uma pequena cidade texana, este homem foi pautando a sua conduta por sólidos princípios, os mesmos que o levarão a abdicar do cargo que ocupa, por achar que há uma desadequação profunda entre aquilo que defende e aquilo que o rodeia. Os tempos mudaram e ele foi incapaz de os acompanhar, já que o que exigiam era, se não a negação, seguramente o ignorar de tudo quanto o construía enquanto Homem. Acredita na verdade, até porque ‘…depois de todas as mentiras terem sido contadas e esquecidas, a verdade perdura ainda. (…) É a matéria de que são feitas as nossas palavras.’ Luta pelo Bem, mas apercebe-se que ‘Quando se fala em certo e errado às pessoas de agora, elas têm tendência para sorrir.’ Acredita na família e no amor, chegando a ser dolorosamente ingénua a dedicação que tem à esposa. Quando tudo à volta arde, o amor que lhe entrega fortalece-se, sem terror de ‘amar num sítio tão frágil como o mundo’(1). Toma consciência da degradação das gerações mais novas, que em vez da irreverência própria da idade, mergulham em submundos . Defende a tolerância, o altruísmo e o respeito, mas sabe que ‘provavelmente, o único motivo que faz com que ainda esteja vivo é o facto de não lhe terem respeito nenhum.’
Nos antípodas desta personagem encontramos Chigurgh, a personificação do Mal, Satã que, qual fantasma, ‘anda por aí à solta’. Encarnação dos contra-valores, deles é cumpridor metódico e incansável. No universo em que vive, que criou, é um homem vertical e honesto para quem a morte é só a morte e que, impassivelmente, mata em nome das metas traçadas.
Trava-se, entre estas duas personagens o duelo superior e antiquíssimo: o Bem vs o Mal. Vence o Mal: Chigurgh, impune, deambula nas trevas, onde continua a lutar pelos seus princípios invertidos. Vence o mal, e com mérito até, já que revestido de coerência. Aos pés de Satã morre, angustiado de desistência, o Xerife Bell.
Não é para velhos o seu país. E se, por sinédoque, o país de Bell for o mundo que habitamos? E quem são os velhos? Homens e mulheres enlouquecidos pelo tempo dos tempos, ou metáfora inquietante de todos quantos sentem a vulnerabilidade da rectidão dos princípios?
O velho Xerife abandona o cargo, reformando-se da própria vida, mas ela vem encontrá-lo e é justamente este encontro que valida todo o livro, tornando-o quase apetecível: ‘E no sonho eu sabia que ele ia desbravar caminho e que tencionava atear uma fogueira algures, no meio daquelas trevas tão densas e daquele frio tão cortante, e sabia que, quando eu lá chegasse, ele estaria à minha espera. E foi então que acordei.’
Na escuridão absoluta das ‘trevas tão densas’ e tão gélidas, um archote ilumina o caminho, onde a raiz, pacientemente, aguarda que se renovem os ramos. Bell acorda. Apenas do seu sono ou do marasmo da desistência que o tomou?
Não acredito na ingenuidade deste final. Acredito, ingenuamente talvez, que há aqui o passar de uma mensagem de esperança e o de um apelo à lucidez dos ideais, que os tempos que correm insistem em deturpar. Que permitimos que sejam deturpados.

Utopia, utopia.
Mas sem ela, onde fica o horizonte?

Antónia Mancha

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(1) Do poema 'Terror de te amar', de Sophia de Mello Breyner